domingo, 19 de febrero de 2012

Teresa Cristina - Delicada

Delicada

 Porta-estandarte da ressurreição da Lapa carioca, Teresa Cristina pertence a essa linhagem nobre e rara de artistas essenciais, forjados na batalha. Sua faina de shows no incipiente bar Semente, no miolo do bairro, dez anos atrás, fez a cantora emergir nos braços (e palmas) do povo do lugar. Mas sem populismo. Numa nova etapa de sua carreira, construída passo a passo, sem explosões ou descartes, Teresa estréia na multinacional EMI, no disco Delicada. A faixa-título é uma bossa nova do cantor/autor Zé Renato, que ela letrou. Sem preconceito, nem mania de passado.

“A bossa nova pra mim faz parte do samba, é um samba mais lento”, decupa sábia. E faz estrear em sua voz desde o baião do maranhense João do Vale Pé do Lajeiro (com José Cândido e Paulo Bangu), já gravado por ninguém menos que Tom Jobim, ao samba de roda do baiano Walter Queiroz, Carrinho de linha, que ouvia na voz de Fafá de Belém. Além do samba Gema, de Caetano Veloso, pepita que foi escavar no disco “Outras palavras” (1981), um de seus preferidos do tropicalista. “Eu ouvia dois momentos distintos nessa música, uma batucada meio amacumbada e o refrão, como se fosse de um samba de enredo”, distingue. Conheceu o compositor nos bastidores de um show do grupo Moinho da Bahia e pediu-lhe um samba inédito. “Mas logo em seguida ele gravou um disco de rock, devia estar voltado para isso e não quis incomodá-lo”, defende zelosa. E Gema já era sucesso em seu laboratório informal nas noitadas da Lapa. Lá também foi testado Carrinho de linha, de Walter Queiroz, a quem foi apresentada na Bahia. Mas só em casa, ouvindo o disco que recebeu dele, deu-se conta tratar-se do autor que apreciava desde os seis anos a partir do sucesso “Filho da Bahia”.

Pé do lajeiro exigiu cuidados especiais. Mesmo sem tocar qualquer instrumento, dividiu a autoria do arranjo com João (neto do escritor Antonio) Callado, cavaquinho de seu inseparável Grupo Semente. “Eu dou pitacos, criei a introdução para ficar diferente da gravação do Tom, que tinha arranjo do João Donato”, separa. O refinado Paulinho da Viola de A gente esquece também foi repescado por ela, no disco que ele gravou com seu nome em 1968. O compositor o renega por ter arranjos orquestrais um tanto pesados para o samba de câmara que desenvolveria nos anos seguintes. Mas Teresa, que estreou num CD duplo em homenagem ao compositor, gosta até mesmo da roupagem suntuosa escrita pelo maestro Gaya na época. “Esse disco me emociona. Para mim lembra o “songbook” do Cole Porter pela Ella Fitzgerald”, compara. Sua preocupação maior foi saber com o próprio Paulinho se as respostas de sopros do arranjo faziam parte da partitura original. Como não faziam, sentiu-se à vontade para recriar o samba cheio de arestas e beleza.

Já seu lado umbanda (“foi o que me fez entrar na música”) a despertou para o ponto estilizado Nem ouro, nem prata (Ruy Maurity/ Júlio J. do Nascimento/ José Jorge/ Olívia S. de Carvalho). “Conheço a música de cor e salteado e ouço o compositor Ruy Maurity desde a novela ‘Dona Xepa’. Ele usava uns cordões e cantava ponto de terreiro”, situa. Por conta dessa afinidade, a música ganhou uma releitura mobilizadora no disco. Há ainda outro tributo de gratidão. Foi ouvindo os discos do pai, do sambista Candeia, que Teresa começou a interessar-se pelo samba. O ebuliente partido A paz do coração (Candeia) integrava um surrado LP do grupo Os Partideiros, e ela nunca conseguiu ouvir inteiro porque o disco estava quebrado nesta faixa. “Foi um fã do Candeia, morador da Barra da Tijuca – achei interessante essa combinação –, o Ricardo Briganti, que me passou a música.” Antes, como todas as outras, o partido-alto passou pelo crivo do produtor Paulão 7 Cordas, que acompanha a cantora desde os primeiros passos. “Ele é meu termômetro, sempre peço sua opinião quando vou incluir alguma música nos discos.”

Delicada acaba num “bloco de carnaval de rua”, com os sucessos Fechei a porta (Sebastião Motta/ Delice Ferreira dos Santos), Rosa Maria (Aníbal da Silva/ Éden Silva) e Jura (Adolfo Macedo/ Marcelino Ramos/ Zé da Zilda). No disco, Teresa contesta de duas maneiras as críticas de que “o pessoal da Lapa prefere música velha, cria pouco”. Primeiro, na criteriosa seleção das regravações. “Foi o Paulinho da Viola quem me sugeriu Fechei a porta, sucesso do Jamelão. A música aparece numa temporada, mas depois a obrigação de trazer o novo faz com que ela seja esquecida”, anota. E dois, na larga (e talentosa) face autoral do disco. A começar por Cantar (“desnudar-se diante da vida/ cantar é vestir-se com a voz que se tem”), incisiva resposta aos que a criticavam no início por interpretar de olhos fechados. “Me aconselharam a abrir o olho, do contrário eu fechava uma janela com o público. Mas o Semente não tinha palco, era um degrauzinho, a impressão que tinha era de que estava cantando no meio das pessoas. Diziam que eu não tinha emoção, cantava parada, não trocava com o público. Eu pensava nisso e achava: ‘se é assim, é porque eu não gosto de cantar’. Mas resolvi responder a essas pessoas sem agressividade. Cantando, como eu gosto.”

Essa delicadeza também se observa nas parcerias como Fim de romance, com Seu Argemiro do Patrocínio, da Velha Guarda da Portela, falecido em 2003. “Ele fez a primeira parte, depois que a gente compôs ‘Amém’. Era meu amigo mais velho e morreu de amor, logo depois que a companheira, Nina, se foi. É difícil cantar essa música, eu choro ao lembrar dele. As pessoas acham bacana cantar chorando, mas é ruim, a voz fica alterada”, reclama. Em Senhora das águas escreveu a primeira parte e João Callado a segunda. “Ele é meu parceiro desde o início, tenho liberdade pra dizer se não gosto de alguma coisa.” Já Saudade de você, também da dupla, por seu cunho autobiográfico, é outra que a conduz às lágrimas. “A melodia já era triste e pra mim quando a tristeza não se transforma em música, ela faz mal.” Na gravação entrou um quarteto de cordas. “A gente resolveu usar todos os recursos do estúdio, mesmo que não desse para reproduzir no palco”, conta. Generosa, Teresa fez questão de abrir espaço em seu solo para os parceiros do Grupo Semente. Pedrinho Miranda é o solista vocal de Quebranto (Alfredo del Penho/ Zé Luís) e Rosa Maria. O percussionista Trambique (“ele é o nosso mascote, tem 62 anos”, brinca) canta Jura. E o grupo mostra seus dotes instrumentais no amaxixado João Teimoso (João Callado).

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